segunda-feira, 18 de junho de 2007

Cinco milhões querem o governo como patrão

Gabriela Carelli

Tornar-se um funcionário público voltou a ser um dos sonhos da classe média brasileira. Só neste ano, 100 000 novos cargos serão disputados em concursos que atraem milhões em busca de bons salários, estabilidade, ascensão na carreira e até prestígio profissional Até pouco tempo a ordem natural das coisas no Brasil era que, em busca de progresso social e econômico, os filhos de pais funcionários públicos procurassem carreiras como profissionais liberais ou em grandes empresas privadas. Hoje o sentido da corrida se inverteu. Um dos grandes sonhos da classe média brasileira que começa a vida economicamente ativa é passar em um concurso que dá acesso a um emprego público na União, no estado ou na prefeitura. Pelo volume e pela qualidade dos cargos oferecidos, a corrida por cargos públicos não tem precedentes na história brasileira. Trabalhar para o estado tornou-se a opção preferencial de um enorme contingente de jovens recém-saídos da faculdade e até de profissionais sem maiores chances de ascensão no setor privado. A proporção de funcionários públicos entre os trabalhadores com carteira assinada no Brasil passou de 17%, na década de 80, para 22%, hoje. É uma proporção maior do que a do Chile, da Argentina, dos Estados Unidos, da Inglaterra. Ela só é menor do que na França (23%), entre as democracias industriais modernas do Ocidente. Parte disso se explica pela cruel lei das burocracias, segundo a qual, deixadas à própria sorte, elas crescem de tamanho e ampliam indefinidamente seus privilégios. Outra parte se explica pelo gigantismo do estado brasileiro, que obriga os cidadãos a trabalhar 145 dias por ano, ou cinco meses, ou, para ficar ainda mais claro, de janeiro a maio, só para custear as despesas do governo. Mas a questão não se esgota nisso. Do lado positivo, as novas levas de funcionários públicos estão ajudando a criar burocracias mais eficientes e menos delinqüentes do que aquelas que tornaram a palavra guichê sinônimo de inferno no Brasil. No ano passado, 5 milhões de brasileiros inscreveram-se em três centenas de concursos promovidos no país para preencher vagas em repartições federais, estaduais e municipais. Isso representa 43% a mais de candidatos do que no início da década. Em 2007, as inscrições para concursos públicos devem bater novo recorde, já que 100.000 empregos estão previstos até o fim do ano. Diz o economista Nelson Marconi, da Fundação Getúlio Vargas, especializado em gestão pública: "O setor público, pela primeira vez em décadas, tornou-se mais desejado do que o privado. Essa preferência é um marco na história dos empregos no Brasil e no perfil da força de trabalho". O estado brasileiro emprega hoje mais de 9 milhões de cidadãos, segundo o IBGE. "Os governos voltaram a ser os maiores e melhores empregadores do país", diz o cientista político José Matias Pereira, da Universidade de Brasília (UnB). "Em nenhum outro lugar um funcionário vai encontrar salários tão bons, acompanhados de benefícios." Pereira, autor de um estudo sobre o perfil do funcionário público entre 1970 e 2004, acredita que a valorização da carreira pública que se verifica hoje só é similar à registrada há três décadas. "Nos anos 60 e 70, fase do chamado milagre brasileiro, o setor público oferecia salários altos para conquistar talentos. Isso voltou a acontecer", diz ele. Nos cursos preparatórios para concursos, essa mudança de perfil fica ainda mais clara. "Há dez anos, o aluno-padrão tinha entre 40 e 60 anos. Hoje, nossas salas se parecem com as dos cursinhos para vestibular. Estão lotadas de jovens de 25 anos, mais da metade deles recém-saídos das universidades", diz Thiago Sayão, diretor da Meta Concursos, uma das maiores escolas preparatórias para concursos do país. O carioca Renato Travassos, de 31 anos, analista do BNDES, optou pelo serviço público mesmo com boas possibilidades de sucesso no setor privado. Filho de pai médico e mãe professora, ele se formou em economia e direito. Em seu currículo constam estágios em empresas como o banco Itaú e a Shell. Ele depõe: "Tive a chance de experimentar os dois ambientes e compará-los. No setor público, tenho mais oportunidade de progredir". O mercado de trabalho privado está muito mais competitivo. Com a multiplicação dos cursos superiores no país, a quantidade de jovens que saem com um diploma nas mãos em busca de emprego cresce em proporção geométrica. Com uma taxa nacional de desemprego na casa dos 10%, é natural que a pressão seja aliviada pelo retumbante setor público brasileiro. Mas só isso não explica o fascínio que o funcionalismo exerce nos brasileiros. O principal motivo pelo qual tanta gente se inscreve nos concursos é que trabalhar para o governo oferece hoje um pacote de recompensas muito maior do que no passado. Nos últimos dez anos, o salário médio de um funcionário público da esfera federal passou de 1 400 para 4 700 reais. Essa remuneração é 97,3% maior do que a média do setor privado. De acordo com um levantamento recente, entre 1992 e 2005 o salário do setor público aumentou 254% em relação ao do setor privado, considerando-se empregados com a mesma escolaridade, idade, cor e sexo. Dados do Ministério do Planejamento revelam que 35% dos servidores federais recebem salário entre 2.500 e 6.500 reais. Oito por cento deles ganham 8.500 reais ou acima disso. Os candidatos a cargos públicos são seduzidos por privilégios impensáveis nas empresas privadas – a estabilidade no emprego é o mais típico deles. Entre 1999 e 2005, a oferta de vagas no setor privado cresceu mais do que no público – 31,5%, contra 16,3%. A rotatividade dos funcionários nas empresas privadas é, por definição, cada vez maior em razão das exigências conjunturais por aumento da eficiência, produtividade e dos cortes de custos. O servidor do estado raramente é demitido. A Constituição de 1988 determina que todos os funcionários públicos tenham estabilidade plena. Podem ser afastados apenas em casos graves, como insubordinação e abandono de emprego. Estima-se que menos de 1% dos funcionários públicos brasileiros perca o cargo a cada ano.

Fonte: Revista Veja

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