segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Previdência e opinião pública

"O Brasil é um país em que a miséria de grande parte da população não encontra outra explicação que a resistência das classes dominantes a toda mudança capaz de pôr em risco seus privilégios."(Celso Furtado, 1979)
EDUARDO FAGNANI e JOSÉ CELSO CARDOSO JR.
NO ATUAL debate sobre a Previdência, a percepção de Furtado permanece viva. As classes dominantes jamais aceitaram os avanços de 1988, mesmo quando se trata apenas de garantir direitos sociais básicos para a construção de uma sociedade democrática e justa.
Desde então, tentam "comprovar" sua inviabilidade financeira e propõem reformas para fazer retroceder conquistas -muitas das quais já efetivadas. É emblemático que, em 2006, entidades do setor financeiro tenham patrocinado o documento "Um novo modelo de Previdência Social para o Brasil", que propugna enterrar o que restou da seguridade social brasileira.
Em 2007, o FNPS reacendeu essas esperanças. O debate é focado na solução de problemas complexos -crises fiscal e financeira do Estado- por meio do ajuste fiscal; e, este, pela supressão de direitos. Transparece uma construção ideológica baseada em fatos parciais, alguns dos quais presentes na réplica de Fabio Giambiagi ("Tendências/Debates", 8/8) a um artigo de nossa autoria. Ele afirma que "o Brasil gasta muito em aposentadorias e pouco em investimento".
O Brasil gasta muito em aposentadorias? A proporção gasto/PIB (7%) indica que não transgredimos os padrões internacionais. Nem sequer se pode afirmar que o gasto social brasileiro seja elevado. Estudos da Cepal indicam que o gasto social por habitante na Argentina é o dobro. Também ficamos atrás de Panamá, Chile, Costa Rica, Cuba e Uruguai.
É o gasto em aposentadoria o principal gasto corrente a inviabilizar os investimentos? Os encargos financeiros lideram o ranking (8% do PIB). Em razão das taxas de juros, entre 1994 e 2002 a relação dívida pública/ PIB foi de 29% para 60%; e, de 2003 a 2006, o estoque da dívida cresceu R$ 500 bilhões -algo como 50 anos de Bolsa Família; 22 anos de gastos federais em educação; 300 linhas similares ao trecho quatro do metrô paulista. Assim, por que obscurecer a questão financeira e apontar todas as baterias contra a Previdência Social?
Argumentam que a despesa com benefícios tem crescido. De fato, foi de 2,5% para 7% do PIB (1988-2006).
Mas, por que cresceu? Por causa da montagem de um razoável sistema de proteção social que beneficia direta e indiretamente mais de 87 milhões de pessoas; do medíocre crescimento do PIB (2% ao ano, em média); da "corrida às aposentadorias" diante de reformas como as de 1998 e 2003; da recuperação real do salário mínimo (100% de 1994 a 2006), que, aliás, apenas o fez retornar ao patamar dos anos 80. É certo que o ritmo será mantido? Não. A emenda constitucional 20/98 já tornou as regras severas; o PAC atrelou reajustes do mínimo ao PIB; e 50% da PEA (desempregados e informais) terá dificuldade de comprovar contribuição previdenciária mínima.
A população vai envelhecer? Sim, a proporção de idosos aumentará de 5,5% para 15,3% entre 2000 e 2040.
Mas o que acontecerá com o resto da população? A de até 14 anos cairá de 29,8% para 19,3%, e a de 15 a 64 anos aumentará de 64,8% para 65,4%. Logo, se teremos ônus ou bônus demográfico vai depender do nível e do tipo de crescimento econômico vindouro, e não da transição demográfica em si.
O Brasil não estabelece idade mínima? Ora, a EC 20/98 criou duas alternativas: a) aposentadoria "por idade" aos 65/60 anos (homens/mulheres) e 15 anos de contribuição; b) "por tempo de contribuição" aos 35/30 anos, com incidência do fator previdenciário até a idade mínima de 60/55. Nos dois casos, o fluxo dos novos benefícios indica idade média semelhante à dos países da OCDE, cujas condições socioeconômicas, demográficas e regionais são superiores às nossas.
Por fim, não questionamos as convicções democráticas do nosso interlocutor. Mas apontamos que, ao afirmar que o "déficit" da Previdência "é um fato real, e não contábil", desconsidera os artigos da Constituição que explicitam e vinculam as fontes de financiamento da seguridade social.
Em 2006, ela foi superavitária em mais de R$ 50 bilhões. A menção ao conservadorismo se baseia em sua obra, na qual tece críticas severas aos avanços sociais da Carta de 1988.
Em suma, o debate proposto pela ortodoxia é pontilhado por fatos parciais para justificar o ajuste fiscal. O movimento social tem apontado para uma estratégia de desenvolvimento capaz de construir uma sociedade justa. A escolha caberá à sociedade. O papel ético dos especialistas é esclarecer a opinião pública.
*EDUARDO FAGNANI , 51, economista, é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho). JOSÉ CELSO *CARDOSO JR. , 38, economista, doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp, é técnico de pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Fonte: Folha de São Paulo
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