segunda-feira, 10 de março de 2008

Reforma no varejo

Do chão de fábrica aos gabinetes de Brasília, não há quem acredite ser possível chegar ao Congresso, a curto prazo, um conjunto coeso de medidas para impor mudanças estruturais às relações trabalhistas no Brasil. Ainda assim, nas últimas semanas, vieram a público sugestões e propostas capazes de, se aprovadas, dar uma nova cara ao mundo do trabalho. No meio da reforma fiscal, há iniciativas para desonerar a folha de pagamento, um pleito antigo das empresas. As centrais sindicais, por sua vez, aproveitam o aquecimento da economia para trazer à ordem do dia discussões adormecidas nos tempos de estagnação econômica, como a redução da jornada de trabalho.

Outra pauta polêmica, levada ao Congresso pelo presidente Lula no fim de fevereiro, diz respeito a duas convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a 151 e a 158. A primeira trata das negociações coletivas do funcionalismo público, e ameniza o temor de regras mais rígidas para o direito de greve. A outra, ainda mais polêmica, dificulta o rito das demissões sem justa causa, ao exigir que as empresas submetam aos sindicatos e à Justiça do Trabalho a decisão de dispensar funcionários.

O conjunto das propostas levanta o seguinte dilema: é preciso cortar custos para permitir a uma parcela maior da população o ingresso no mercado formal ou, ao garantir e ampliar direitos, o Estado colabora para o aquecimento da economia e promove a geração de emprego? Se durante o período de crescimento reduzido, especialmente na década de 90, a primeira opção parecia ser o caminho óbvio, a resposta hoje deixa de ser tão simples. A despeito dos últimos aumentos do salário mínimo, a inflação permanece controlada, o déficit da Previdência é decrescente e há mais vagas no mercado formal.

“Os últimos anos foram de fragilização das condições de trabalho, sem que nenhuma melhora no nível de emprego resultasse daí”, diz o deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), líder do governo na Câmara. “Mas as políticas recentes de aumento da renda da população mostraram que é possível criar um círculo virtuoso para a economia ao reforçar, com equilíbrio, a proteção ao trabalho.”

Para o deputado, não restam dúvidas de que o fator decisivo para a geração de empregos é o bom desempenho da política econômica. “As medidas apresentadas pelo governo até agora têm como objetivo tranqüilizar o mundo do trabalho”, afirma. A redução gradual na contribuição patronal para o INSS, com queda de 1 ponto porcentual a cada ano, até baixar o encargo dos atuais 20% para 14%, conforme prevê a reforma fiscal, seria viável diante da queda esperada no déficit da Previdência. De outro lado, Fontana se diz partidário da convenção 158 e da redução da jornada de trabalho das atuais 44 horas para 40 horas semanais, como propõem, em conjunto, as principais centrais sindicais.

O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Arthur Henrique, aposta que o endurecimento das regras para a demissão sem justa causa diminuiria a alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro. Segundo o sindicalista, 10 milhões de funcionários foram admitidos pelas empresas no ano passado, mas outros 8 milhões perderam os empregos no mesmo período. “Isso explica por que há milhões de ações em curso na Justiça do Trabalho. É o único caminho que resta para boa parte dos demitidos”, afirma.

Para estimular a abertura de postos de trabalho, a central aposta na redução da jornada, sem queda nos salários. “Queremos aproveitar o ganho de produtividade acumulado nos últimos anos e o atual aumento de demanda para estimular a contratação de um número maior de trabalhadores”, diz Henrique.

Os planos das centrais recebem críticas contundentes das entidades representativas do empresariado, que vêem as iniciativas como um tiro no pé de quem pensa em contratar mais trabalhadores. “Há, de fato, medidas em discussão que podem impactar o mercado de trabalho, mas de forma negativa”, afirma o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Armando Monteiro Neto. “Introduzir a convenção 158 no País, por exemplo, seria um retrocesso. É impossível fechar a porta de saída das empresas sem bater também a de entrada.”

Monteiro Neto diz considerar natural, em uma conjuntura favorável à economia, que os trabalhadores se mobilizem pela ampliação de direitos, mas defende que o Brasil privilegie medidas para aumentar a competitividade das empresas no mercado internacional. “A tendência é que a renda continue a crescer, mas o custo da mão-de-obra também vai aumentar. Mundialmente, o nível de emprego é melhor nos países que tributam menos e adotam relações de trabalho mais flexíveis”, diz.

A reforma fiscal, segundo o presidente da CNI, tende a provar que a desoneração da folha de pagamentos é capaz de criar empregos em escala suficiente para compensar quaisquer efeitos negativos da perda de arrecadação. De outro lado, a CUT teme que as mudanças prejudiquem o sistema de seguridade social. “Não podemos permitir que verbas carimbadas caiam no cofre comum do governo e coloquem em risco a Previdência, a educação e os projetos sociais”, afirma Arthur Henrique.

As discussões também dividem o mundo acadêmico. Os pesquisadores do Centro de Estudos de Economia Sindical e do Trabalho (Cesit), da Unicamp, Eduardo Fagnani e Dario Klein, afirmam que não há provas de que a redução de direitos trabalhistas leve ao aumento de empregos no mercado formal. “As empresas vão contratar de acordo com a demanda, e não porque o trabalhador custa 5% ou 10% a mais ou a menos, sobretudo num país em que os salários são relativamente baixos”, diz Klein. O professor cita exemplos de nações como Argentina e Chile, que cortaram benefícios dos trabalhadores, em tempos de estagnação econômica, sem obter os resultados esperados.

Fagnani afirma que os cálculos que indicam os altos encargos trabalhistas no Brasil computam como custos o descanso semanal, os feriados, as férias e o 13º salário, entre outros direitos. “Na verdade, os encargos são de 30% a 35% da folha de pagamentos, e não 100%, como estamos acostumados a ouvir”, diz. De acordo com o pesquisador, que em abril vai lançar o livro Previdência Social: Como incluir os excluídos, bastam o crescimento sustentado e a queda dos juros para que sejam feitos os ajustes necessários nas contas públicas. “Não é preciso pôr em risco o financiamento da seguridade social, com cortes nas receitas, para aumentar o nível de emprego”, defende.

O chefe do Centro de Crescimento Econômico da Fundação Getulio Vargas, Samuel de Abreu Pessoa, segue uma linha de pensamento diferente. Para ele, a proposta de desoneração gradual da folha de pagamentos vai permitir ao governo avaliar o impacto da medida sobre o crescimento do PIB. “O efeito não é imediato, mas a tendência é que os efeitos positivos compensem a perda de arrecadação”, avalia. O professor diz ter aplicado, há três anos, um modelo para medir os efeitos da desoneração sobre dois setores da economia, com resultados positivos sobre a renda do trabalhador e o problema da informalidade.

“A curto prazo, a desoneração só aumenta a rentabilidade da empresa. Mas, quando entram em cena as novas contratações, a competição pela mão-de-obra provoca o aumento dos salários”, explica. Pessoa avalia que a ampliação de direitos dos trabalhadores, no momento, poderia comprometer a geração de empregos. “Para o nosso nível de renda, o pacote de benefícios é mais do que suficiente. A desoneração é o caminho”, diz. Segundo o professor, mesmo países europeus com maior nível de proteção social, como França e Suécia, só melhoraram as condições de trabalho depois de atingir um desenvolvimento econômico muito superior ao brasileiro.

Apesar de discordar de propostas como a da convenção 158 e a redução de jornada, Pessoa avalia que o governo adotou uma estratégia correta para a área trabalhista. “Lula apostou na reforma que tem chances concretas de ser aprovada, a fiscal. Mas, ao mesmo tempo, pôs em discussão medidas que tendem a agradar as bases do partido”, avalia. Mesmo sem um pacote de medidas formatado sob a rubrica “reforma trabalhista”, há em pauta propostas suficientes para mudar o mercado de trabalho. Se para melhor ou pior, será uma questão de escolha dos congressistas.

Carta Capital

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