quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Alforria para ''escraviários''

A atitude de quem escreve num espaço como este é usualmente a de analisar, criticar e sugerir melhorias quanto ao tema abordado. Como muitos companheiros do ramo, sigo o lema de que a luta continua, pois na maioria das vezes não vem nenhum resultado perceptível, embora haja os que nos tentam animar dizendo que a contribuição, ainda que difusa, seria a de formar opinião. Quando o ego prevalece, vem também a sensação de que o texto serviu de desabafo e de cumprimento de uma obrigação perante si mesmo, a de manifestar inconformismo diante de algo de que se discorda.

De qualquer forma, há uns poucos momentos em que fatos novos vêm em sintonia com o que foi pregado. Embora não se possa tomá-los como resultado da pregação, nesse jogo o relevante é também a bola na rede, e não importa quem fez o gol. Ademais, a escassez de momentos desse tipo amplia seu valor como alimento do ânimo de não desistir.

Como fato novo, refiro-me hoje à nova lei federal que regula estágios de estudantes como trabalhadores, a de nº 11.788, de 25 do mês passado, que cobre vários aspectos dessa atividade fundamental para a formação profissional. Entre eles, determina jornada máxima diária de seis horas, concessão de recesso remunerado, possibilidade de estágios com profissionais liberais, obrigatoriedade de bolsa ou remuneração e de auxílio-transporte e acompanhamento da atividade por professor da instituição de ensino e por supervisor do lado do contratante.

Quanto à pregação, por vezes usei este e outros fóruns para apontar distorções envolvendo os estágios. Também conversei sobre o assunto com o ministro da Educação, Fernando Haddad, de cuja iniciativa veio o projeto que o presidente Lula enviou ao Congresso, onde havia também o interesse de parlamentares em tratar do assunto, do que resultou a nova lei.

Soube das distorções pelos depoimentos de vários estagiários. Em particular, elas envolviam um regime de oito ou mais horas de trabalho, sem férias e ocupação em atividades estranhas ao objetivo do estágio, como as de telefonista, digitador ou operador de copiadoras. Também aprendi o termo "escraviários", com que alguns jovens descreviam sua condição perante os contratantes. Percebia-se que para alguns destes a isenção de encargos trabalhistas e previdenciários nos contratos de estágio era utilizada para colocar estudantes como empregados disfarçados na condição de estagiários.

Ao citar acima alguns dos aspectos da nova lei, coloquei em primeiro lugar o limite diário de seis horas trabalhadas, pois o considero o ponto mais importante da nova legislação. Sempre argumentei por esse limite porque oito horas de "estágio", supondo mais quatro na escola, as horas de sono e o tempo gasto com transporte, alimentação e cuidados pessoais, tudo isso leva a uma soma que não deixa um tempo razoável para o jovem estudar o que lhe é ensinado, e aproveitar melhor o curso.

Também tomei como parâmetro minha experiência pessoal, pois do ensino médio ao superior trabalhei em regime de seis horas diárias. Ainda que usando fins de semana e férias nesse trabalho para pôr tarefas escolares em dia, foi possível compatibilizar estudo com trabalho, conseguindo um equilíbrio entre ambos. O trabalho, em bancos, serviu também como um estágio adequado aos cursos que desenvolvia.

Vale lembrar que o limite agora fixado não exclui outros mais restritos estabelecidos pelas instituições de ensino, como os que impeçam os estágios nos dois primeiros anos de curso ou fixem um número menor de horas nesse início. Cursos que tomam mais de quatro horas diárias de presença do estudante na escola, evidentemente, são mais carentes de regras desse tipo.

Enquanto corria a discussão da nova lei no Congresso, houve quem dissesse que instituições que fazem a intermediação entre contratantes e estudantes estariam contra o limite de seis horas e outras regras contempladas nessa discussão. Isso porque temeriam perder espaço para suas atividades em função de um eventual impacto negativo sobre o número de estagiários contratados.

Se essa reação ocorreu, deve ter partido de instituições mais preocupadas com esse número em si do que com o caráter pedagógico do estágio, comprometido por distorções como apontadas acima. O fato de que a legislação veio mostra que essa reação não foi acolhida. Sei também que a instituição mais importante nessa intermediação, o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), apoiou a versão final da nova lei. Mais do que isso, pois um anúncio que publicou neste jornal no domingo passado começa dizendo que "O CIEE comemora a aprovação da nova lei..."

De fato, cabe a comemoração, mas celebro também o estímulo que ela trouxe à luta que sempre continua. Será preciso verificar se a nova legislação terá aplicação adequada, para o que será indispensável o empenho dos responsáveis pelas instituições de ensino, dos próprios estagiários e da ação fiscalizadora dos Ministérios do Trabalho e da Educação e do Ministério Público do Trabalho.

Quanto a isso, a penalidade prevista pela nova lei para os casos de descumprimento se revela intimidadora, pois seu artigo 15 está assim escrito: "A manutenção de estagiários em desconformidade com esta Lei caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária."

Espero que daqui por diante cessem as referências aos "escraviários", pois, em tese, a lei pode ser vista como uma alforria para esse grupo. Iniciemos, pois, o estágio de acompanhá-la para que não se distancie dos caminhos que levam a esse objetivo.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda
Estado de S.Paulo

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